A Perversão da Lei
Nos últimos anos da sua presidência, que foram, com pouca diferença, os da sua vida, François Mitterrand afirmou, em discurso que proferiu perante os presidentes dos tribunais constitucionais europeus, estas palavras: “Foi Paul Valéry quem disse: O europeu baseia-se na filosofia grega, no direito romano e na teologia cristã”. Esta ideia coincide em substância com outros filósofos, que escreveram em suma que a metafísica grega, o direito romano e a religião de Israel, deixando de lado a sua origem e destino divinos, são os três produtos mais gigantesco do espírito humano. Pois bem, deixando de lado o que é indubitavelmente eurocêntrico nota-se claramente o carácter axial que o direito, o ordenamento jurídico tem para a civilização como um todo… A Raiz Romana.
E isso porque o direito não é apenas – como pode parecer à primeira vista – um simples instrumento para resolver os conflitos de interesses, mas constitui um fator essencial de organização e conformação social: sem lei não há sociedade. A tal ponto que, na atualidade, um Estado é – ainda mais do que uma estrutura de poder hierarquicamente organizada do chefe do Estado à última guarda municipal – um sistema que define espaços de liberdade, impõe limites, concede e protege direitos, resolve disputas e pune infrações. Como resultado, se a lei cumpre essa função crucial, as duas grandes questões que ela levanta – mais do que jurídica, política – são quem dita as regras e de acordo com quais critérios e princípios elas devem ser ditadas.
Na Roma antiga, a lei era basicamente costumeira, ou seja, as normas eram criadas e impostas pelo uso social. E, dentro da República Romana, essas normas eram a expressão do que aquela sociedade considerava adequado ao que era conveniente em cada momento histórico. Tudo isso implicava:
1) Esse poder político – apesar de ter poder normativo – não era a fonte fundamental do direito, portanto, faltava-lhe o poder de moldar a sociedade de acordo com seus critérios.
2) Que a ideia de justiça – que se exprimia no termo ius – estava intrinsecamente ligada à vontade social dominante, podendo-se concluir que a ideia do justo baseava-se no único princípio ético de validade universal não metafísico: que o interesse geral deve prevalecer sobre o indivíduo.
No entanto, à medida que – ao longo dos séculos – os sistemas jurídicos europeus levaram ao alargamento do âmbito das liberdades dos cidadãos, a importância dos costumes como fonte de direito diminuiu progressivamente, que foi logo deslocada, inicialmente pelo rei absoluto e depois pelos parlamentos democráticos. A consequência desse fato é evidente: a possibilidade de moldar a sociedade por meio de leis da maioria parlamentar foi deixada nas mãos do rei e, posteriormente, dos parlamentos, embora isso dispense – às vezes – de levar em conta os sentimentos de amplos setores sociais.
Perante esta situação, há que afirmar, desde o início e sem ambigüidades, que esta é a regra de ouro da democracia: deve ser seguida a vontade da maioria e cumpridas as leis que dela emanam. Agora, com a mesma contundência, deve-se acrescentar, imediatamente a seguir, que se um sistema jurídico deve funcionar por muito tempo de forma solvente, deve-se evitar a aplicação silogística e rigorosa de seus princípios, pois – como os Romanos sempre disseram- – «summum ius, summa iniuria». Tanto que a virtude jurídica por excelência não é a justiça, mas a prudência, razão pela qual qualquer resposta jurídica – e qualquer lei digna desse nome é a resposta a uma necessidade social – deve ser prudente, isto é, , deve-se levar em conta as circunstâncias de cada caso concreto, a maior ou menor necessidade de sua concretização, seus possíveis efeitos negativos e divergentes, bem como seu custo em termos de harmonia social e a erosão daqueles consensos mínimos em que estabelece a coexistência democrática.
Tudo isso sem prejudicar a necessária promoção de reformas sociais, por meio de leis inovadoras que se oporão inevitavelmente às convicções de alguns e ferirão os interesses e expectativas de outros. O que se afirma é que, antes de dar um passo para mudar uma lei existente ou promulgar uma nova, a urgência do projeto, o que ele contribui e qual é seu custo, deve ser avaliada com rigor. O não cumprimento supõe uma perversão da lei, que é então instrumentalizada a serviço de um repertório de ideias e crenças particulares – tão respeitáveis quanto quaisquer outras – e tão indignas – também como qualquer outra – de ser imposta como se uma verdade absoluta está envolvida. Portanto, nas grandes questões que afetam as convicções profundas das pessoas, convém proceder sempre em termos de harmonia, buscando compromissos e pactos, bem como fugindo daquela arrogância com que o poder sempre tenta aqueles que o amam exercer.